Sem dúvida que passar por uma crise existencial causa sofrimento ao adolescente. Mas e quando esse adolecente já enfrenta outros sofrimentos? Conheça a história de Carlla Candece.
A Vila Embratel tem esse nome por conta de uma torre instalada ali, que é um dos poucos sinais da mão do estado no bairro maranhense. Região periférica, a Vila Embratel é alvo de coisas que já conhecemos e vemos nos noticiários, mas sem, muitas vezes, vivenciar cotidianamente: tráfico de drogas, violência, marginalização, descaso.
Não é difícil acreditar que Carlla Candece é literal quando fala que metade de seus amigos já morreram, como consequência dos problemas sociais dali. De carro, levariam 46 horas da sede da Fundação Iniciativa, aqui em Curitiba, até São Luís do Maranhão – estado chamado por ela de “terra de encantaria”- e seu esquecido bairro. Mas é através dessa estudante de Direito de 23 anos que conseguimos encurtar essa viagem para algumas linhas.
A Carlla é transparente em sua fala, não se deixa esconder, e não deixa principalmente de esconder o orgulho por ter superado as dificuldades que leremos aqui. Ela tem muitos planos, muitos sonhos, mas também muito a contar do que já viveu, do que a transformou enquanto pessoa. Seu sotaque, bom de ouvir, é uma mistura de Rio de Janeiro, onde morou até os 8 anos, e claro, Maranhão. Vamos pular alguns anos e partir para a adolescência. Atender adolescentes é um dos nossos desafios aqui na iniciativa, e passa por entender o conceito e as peculiaridades dessa fase.
Adolescência
Segundo a psicóloga Maria de Lourdes Viana Ferreira, a adolescência é o momento de desenvolver raciocínio lógico e o senso crítico. Não apenas isso, mas é ali também que ouve-se um estrondo: é a identidade mudando, sem prévio aviso. No meio dos escombros, resta segurar em algo que ela chama de “fonte de identidade”, indo até a grupos, estilos, maneiras de ser, ou pelo menos de ir tentando ser.
Apesar de vários modos de ver e rever o adolescente, fato é que é cada vez mais popular a corrente de pensamento que considera a adolescência como um período da vida autônomo, e não mera fase de transição entre infância e vida adulta. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, são considerados adolescentes os indivíduos entre 12 e 18 anos. Corpo e mente humanas, contudo, não seguem à risca o que manda a letra da lei, e as alterações vem quando decidem vir.
É na adolescência que se dá a construção da identidade, marcada por escolhas. Com efeito, surge a visão tão comum da adolescência como “época de escolhas”. Mas o tom dessa frase costuma ser mais leve do que a realidade, já que no dia-a-dia do adolescente, as crises internas – especialmente a crise existencial – costumam bombardear as emoções, que geram, dentre outras coisas, picos e vales de ansiedade, angústia, desânimo e frustração.
No meio de tanto caos, não é de se espantar que surja a imagem do “aborrecente”. Não só o adolescente, mas a própria adolescência passa a ser vista, em si, como problema social, capaz de gerar danos tanto individuais quanto coletivos. Preparadas com equipe multidisciplinar, as instituições de acolhimento tentam levar o adolescente ao desenvolvimento à luz da ciência, e não do senso comum.
Prazer, Mariana
Em um vídeo do TikTok, achei uma psicóloga com linguagem simples, didática e um talento indiscutível para a comunicação. Trata-se de Mariana Ros Stefani, colaboradora do instituto Vita Alere, focado na prevenção do suicídio, possibilidade que habitou a mente de Carlla principalmente durante a adolescência e a gravidez, aos 17 anos. Parece que não, mas tem tudo a ver com o que estamos falando aqui: suicídio, na visão de Mariana, tem como uma das causas a falta de ferramentas – ou pelo menos de enxergar as ferramentas – para lidar com as diferentes crises que aparecem. Fato é que, tanto material quanto imaterialmente, o sujeito vulnerável não terá o mesmo acesso a ferramentas de enfrentamento.
“Olha que coisa louca: se a criança não está afetivamente bem, não estará cognitivamente aberta. […] Se a pessoa está em um nível de estresse alto ela não vai conseguir desenvolver as funções cognitivas do mesmo jeito. O contrário também vale: imagine quanto estresse gera você não entender “na semana que vem vai acontecer tal coisa”, porque você ainda não entendeu o que é uma semana, e todo mundo ao seu redor fala essa língua, mas você não. À partir do momento em que ela está desenvolvendo essas coisas na escola, está adquirindo ferramentas para ela: de dimensão de tempo, de reversibilidade, de constância de objetos… Sei que isso parece muita viagem, mas perceba o quanto isso é protetivo em termos de saúde mental, você ter esse raciocínio.“
(Mariana Ros Stefani)
Lá na Vila Embratel, as ferramentas eram poucas: filha de mãe solo, que usava quase que todo seu tempo de vida para garantir o sustento à família, Carlla foi criada somente pela avó. A adolescência foi de isolamento, angústia e questionamentos diversos.
O que é Crise Existencial?
O que é, afinal de contas, uma crise? Mariana tem sua própria concepção. Para ela, “nos vemos em momento de crise quando os referenciais que temos passam a não fazer mais sentido”. Aqui, estamos falando de uma crise em específico: da crise existencial. Maria de Lourdes a chama de “uma crise relativa ao sentido da vida, ao sentido da própria existência”.
” Por muito tempo, os referenciais de quem a gente é são dados pra gente. Isso vai se tornando parte de quem a gente é. Chega um momento em que o que a família e as outras pessoas estão falando não tá fazendo mais sentido. Você começa a se questionar “quem sou eu?”. Pronto, crise existencial começa aí. ”
( Mariana Ros Stefani)
Como falar de referencial nesse caso? A presença de um referencial era pouca, quase nula. Sem amparo, sem alguém com quem conversar, a tarefa de buscar novos referenciais era sempre um fardo angustiante. Daí veio a depressão, só confirmada por um diagnóstico mais tarde, já que o senso comum insistia na ideia de “falta de Deus” ou “frescura”. Não apenas um referencial: Mariana fala da importância de uma rede de apoio em momentos de crise, formada pela família, por amigos e pelo estado. Sem uma rede de apoio estruturada, em um bairro esquecido pelo estado, em meio a uma crise existencial onde se sentia diferente de todos ao redor: estavam dadas as condições para o agravamento de algo que já é, em si, doloroso.
Em um ambiente que não favorece o desenvolvimento, diante de riscos e privações, sem amparo, logo virão as consequências para o emocional. Surgiu, então, a depressão, diagnosticada apenas aos 22 anos, já que o senso comum insistia em falar em “frescura” e “falta de Deus”. O isolamento tampouco era “coisa de adolescente”. Foram os muitos questionamentos e a falta de uma resposta ao renitente “quem sou eu?” que colocaram Carlla diante dessa doença. Inclusive, no início desse ano, a estudante teve de dar uma pausa geral em sua vida por conta de mais uma crise.
A sina que criamos
Mariana nos apresenta o conceito de profecia auto realizadora. O termo pode assustar, mas nada mais é do que uma marca colocada pela sociedade, um carimbo do destino que o senso comum imagina para aquele sujeito.
“Vamos pegar o exemplo de um adolescente que mora em uma região periférica e tem um irmão mais velho no tráfico, pai ausente, mãe em alcoolismo. O que é profecia auto realizadora? é quando você recebe esse jovem e fala “chegou o joãozinho! sabia que o irmão dele é traficante? sabia que a mãe dele é uma bêbada? certeza que o joãozinho vai terminar preso aos 17 anos”. Quando você recebe o jovem e já faz essa aposta, que desserviço você tá fazendo pra vida dele! Qual a relação que se cria? “joãozinho comprou briga de novo? claro que tinha que ser assim, com um irmão daquele…” e aí o que o joãozinho tá internalizando? que é verdade. Em todos os espaços que ele vai ele recebe isso. 4 anos depois, sem ter recebido outras apostas, se vê naquela situação e fecha esse ciclo. ”
(Mariana Ros Stefani)
Não é que o futuro já estava traçado, mas foram os próprios preconceitos que direcionaram aquela história, guiando para o rumo da exclusão. Acontece em todos os lugares onde nos damos o direito de ditar a um jovem destino qualquer que seja.
A Ísis surgiu na vida da Carlla quando ela tinha 17, quase 18 anos. Durante a entrevista, ela reforçou por algumas vezes a dor pelo estigma colocado em cima da adolescente que engravida. Os olhares e vozes de julgamento colocavam sob ela a tarja de “suja” e “errada”, fazendo-a sentir da mesma maneira, como um alimento para mais crise existencial.
“Não existe cuidado em saúde mental se não existe justiça social”
A fundação iniciativa, enquanto garantidora de direitos às crianças e adolescentes, tem a missão de promover justiça social, levando igualdade ou pelo menos tentando mitigar as desigualdades. Privadas do direito à família, essas pequenas pessoas encontram aqui a possibilidade de continuar construindo seu mundo. São indivíduos que já passaram da vulnerabilidade para a violência, em si, contra seus direitos.
A vulnerabilidade social passeia, nas mãos dos especialistas, entre os diversos momentos em que um direito é violado. Alguns falam nela tão somente antes da violação estar posta, porém outros a consideram ainda na fase da limitação ou destituição em si do direito. Mas o que é certo, independente do autor, é que a desigualdade social é sua principal causadora. Por sua natureza de ser em construção, o adolescente é tido como mais sujeito a estar vulnerável.
“Não existe cuidado em saúde mental se não existe justiça social”, ouve Mariana, de colegas da psicologia. A crítica aqui é fácil de entender: como pensar em tratar do emocional, já que contexto de violação de direitos segue de pé? Como tratar da ponta da pirâmide se a base – necessidades e direitos básicos – não ajuda? Assim, a especialista deixa claro que sem políticas públicas, não haverá paz, e as crises continuarão existindo, cada vez piores.
Glow Up
Aqui, a experiência de vida de quem conseguiu mudar sua própria realidade faz dela uma especialista. Carlla postula três pilares que podem mudar uma vida de vulnerabilidade: bens culturais, bens materiais e estabilidade familiar.
“Você precisa de bens culturais para saber da sociedade, ter visão de mundo, você precisa de bens materiais para se manter, ter uma qualidade de vida dentro desse sistema capitalista, e precisamos de apoio familiar para ter estruturas financeiras e psicológicas para lidar com tudo isso, para lidar com o choque de realidade que é sair do ensino médio e ir pra faculdade.”
(Carlla Candece)
O que fez a diferença, aqui, foi a cultura. Carlla faz questão de citar as tradições do bumba meu boi e da capoeira como sua salvação, junto com a leitura. Através de professores gerando os poucos fios da rede de apoio improvisada, tornou-se bolsista, e ano que vem já será bacharel em direito.
Felizmente, para Carlla, a profecia auto realizadora não se cumpriu. Ela teve oportunidades como modelo fotográfica, e usou essas oportunidades para juntar dinheiro e investir em curso de estética, conhecimento que hoje gera renda.
“Eu me senti muito livre, eu me senti muito liberta, eu me senti eu mesma. Eu poderia comprar as coisas que eu queria, ir nos lugares que eu queria, usar as roupas que eu queria, poderia fazer várias coisas, infinitas possibilidades. ”
(Carlla Candece)
Futuro
” Antes eu era só uma menina que não era nada, que era invisível, que não era ninguém, que era tratada como mais uma mãe adolescente na favela que não tinha futuro. E não, hoje eu sou respeitada. Sou a Carlla, a Carlla que vai se formar, que vai ser bacharel em direito, que vai ser advogada, que é mãe da Ísis, que é profissional da área de estética.”
(Carlla Candece)
Perguntei sobre suas pretensões, e Carlla não já tinha na ponta da língua a resposta: quer ser advogada, mas também vai prestar concurso público.
A menos que haja dor intensa, as crises existenciais não devem ser motivo de preocupação. Nos casos mais sérios, porém, é indicado o auxílio da terapia , além de hobbies, meditação e outras técnicas, a fim de que o adolescente habitue-se a focar no presente.