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Fotos das crianças: por que ocultamos os rostos?
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E porque algumas instituições não fazem isso.

Rostos cobertos : a Fundação Iniciativa usa da criatividade para combater a invisibilidade sem ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, há bem mais adultos esperando para adotar do que crianças e adolescentes prontos para adoção: 4.155 crianças e adolescentes esperam por uma família adotiva, enquanto são 32.901 os pretendentes
Rostos cobertos : a Fundação Iniciativa usa da criatividade para combater a invisibilidade sem ferir o Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, há bem mais adultos esperando para adotar do que crianças e adolescentes prontos para a adoção: 4.155 crianças e adolescentes esperam por uma família adotiva, enquanto são 32.901 os pretendentes / Foto: Arquivo da Fundação Iniciativa

Preservar a honra da criança é dever não apenas do estado, mas da sociedade. Com a exposição, traumas podem ser revividos e até mesmo criados. A imagem é um bem da criança, que pode ser explorada de forma inadequada e às vezes até maldosa. A mesma imagem, por outro lado, pode ser instrumento para obtenção de direitos antes negados. É muitas vezes a foto – trazendo rosto, semblante e mais do que uma ficha pode mostrar – a principal ponte entre a criança e sua futura família.

Histórias e práticas

Não são poucas as histórias onde uma foto fez toda a diferença. Seja em grupos restritos ou redes sociais abertas, chegam aos olhos dos futuros pais a imagem dos futuros filhos. Para Danielle Dalavechia, Gestora da Fundação Iniciativa, “as histórias têm que ser contadas, o que não pode é expor, quebrar o sigilo”. A princípio, tudo vai depender do caso a caso e das autoridades. Cada criança é um processo judicial, onde cabe ao promotor pedir ou não segredo de justiça e ao juiz concedê-lo ou não. É daí que vêm as variações nas práticas de divulgação de imagem. Em alguns locais, há maior rigor, o que faz com que as organizações ocultem a face com borrões ou ângulos “espertos”.

Crianças que saíram de situações de violência ou abuso terão suas identidades preservadas. O que ocorre é que, para evitar ter de explicar diferenças no tratamento da imagem – que fariam relembrar traumas – as instituições acabam adotando um padrão: ou todos com imagem oculta, ou todos com imagem exposta. Caberá ao gestor de instituição, como guardião da criança, fazer cumprir o que manda o juiz, podendo responder por isso em caso de desrespeito.

“Esta menina é minha filha!”

Foto: Kristin Hardwick / StockSnap

Uma mãe adotiva, que preferiu não se identificar, conta uma história onde foi a imagem certamente a responsável por gerar uma família. No dia em que buscou as filhas, após todo o processo da guarda, celebraram junto com toda a instituição o momento, que foi registrado em uma foto de todo o grupo, onde também estavam uma menina e um grupo de irmãos destituídos. Ao subir a foto no grupo de adoção tardia de que participava, celebrou o “nascimento das filhas” e comentou sobre as outras crianças. Foi nessa hora que uma mulher do outro lado do país mandou mensagem: “Essa menina é minha filha!”.

Através da foto, com o desejo de adotar, os trâmites começaram. Depois de semanas e meses, viagens até o local, participação em audiências e muita papelada, obtiveram a guarda. Para a autora da imagem, “se eu não tivesse compartilhado esta alegria, do nascimento das minhas filhas pela adoção e mandado aquela foto, talvez aquela menina ainda estivesse dentro daquela instituição”. Contudo, ela opina que fotos devem ser permitidas apenas nos casos de difícil adoção, como as chamadas adoções tardias.

Pelo direito à visibilidade

Em artigo, o Diretor do Instituto de Ensino e Pesquisa do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, procurador Sávio Bittencourt, critica o segredo de justiça nos procedimentos e processos que envolvem a criança acolhida, pois acredita que ele “prejudica o encontro de uma família para ela e impedem o controle social do sistema de garantias, incluindo os atores jurídicos”. Ele defende a dosagem entre os direitos à intimidade e à família – que nos casos de acolhimento depende da visibilidade – sempre lembrando que as duas garantias não são um fim em si mesmo, mas meio para atingir o bem-estar da criança.

“é necessário se verificar se o exercício da preservação das imagens, privacidade e identidade das crianças impede ou dificulta o exercício legítimo de outros direitos seus, que dependem de sua visibilidade.”

(A preservação da imagem da criança institucionalizada e o direito à visibilidade, Sávio Bittencourt)

Erasmo, pai solo

No meio do caminho, temos o caso do Pedagogo Erasmo Coelho. Pai solo, Erasmo encontrou seu filho em um grupo fechado, onde apenas pessoas devidamente habilitadas têm acesso a fotos de quem espera a adoção tardia. Ele participou da busca ativa, que é responsável por ajudar em muitos casos de difícil adoção. Em março de 2020, através de uma foto, finalmente conheceu o Gustavo, com 11 anos.

” A possibilidade dos pretendentes terem acesso às fotos e vídeos das crianças contribuem de certa forma com a tomada de decisão, para o pedido de aproximação, visto que conseguimos “olhar nos olhos”, ver o sorriso… Certa vez ouvi de um Juiz que tenho a maior admiração, o Dr. Iberê de Castro Dias: ‘As crianças e adolescentes abrigados não cometeram crime algum para serem ou ficarem escondidos’.
Quando olhei o sorriso do meu filho me encantei, algo em mim dizia que era ele.
Sou grato a Deus e a possibilidade de existir esse recurso que é a busca ativa, que contribui para formação de muitas famílias.”

‘Vim pra casa com o rostinho dela na minha mente’

@leiladonaria

ADOÇÃO DE CRIANÇAS MAIORES #adocaotardia #adocaobrasil #adocaoconsciente #adocao #filhoefilho #meuamor

♬ som original – leiladonaria

Já a Bia não tem foto do rosto por decisão dos próprios pais, que optam por formas incluí-la nas fotos sem maior exposição. Desde a adoção, a palestrante Leila Donária optou por dar um tempo para que sua filha, agora com 12 anos, absorvesse sua história. Para protegê-la, opta por ângulos que ocultam a face. Irmã do Gabinho, Bia compreende e aceita a decisão, segundo a mãe.

“Às vezes eu ouço “você está excluindo a Bia, porque você mostra o gabinho e não mostra ela”. Eu mostro o gabinho porque a história dele permite, e porque eu comecei aquele instagram para falar de inclusão, para mostrar que crianças com deficiência são capazes. A Bia chegou depois, e chegou com a particularidade da história dela. Nós entendemos que ainda não é possível, que é mais benéfico para ela que a gente continue a protegendo enquanto ela ainda é uma criança está lidando com todas as questões que aconteceram com a vida dela. No momento certo nós vamos apresentá-la.

A Bia chegou aos olhos da Leila pela primeira vez em uma fantasia de halloween. Na primeira reunião para iniciar o processo, ainda sem a presença da criança, elasoltou um “você tem fotos?”. A psicóloga então sacou o celular. ” ela tava de bruxinha. Nunca vou esquecer daquela foto, uma graça”, lembra. Três dias depois, veio o primeiro contato entre mãe e filha.

“Independente da imagem eu sabia que ela seria minha filha. Nosso perfil era aberto, poderia ser qualquer criança que eu sabia que era minha. Mas sem dúvida, você conseguir personificar aquela criança de alguma forma é muito maravilhoso. Vim pra casa com o rostinho dela já na minha mente, eu sabia que aquela lá era a minha bia.”

Trajetória em fotos e vídeos

Família Fabris reunida.
Doutora Fernanda Fabris, Maurício Fabris e os quatro filhos do casal / Foto: Instagram (Reprodução)

A Doutora Fernanda Fabris gosta de manter os pés no chão quando fala em adotar. Casada com Maurício, ela adotou 4 filhos, todos irmãos biológicos, adotados com as idades de 3, 6, 9 e 11 anos. O responsável por mediar o encontro foi o site Adote um Boa Noite, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Ali são colocadas fotos de crianças e adolescentes que não estão no perfil mais procurado, portanto, de adoção mais difícil. Apesar da forma madura de Fernanda lidar com tudo, a história não deixa de emocionar quem ouve.

Foram 11 anos tentando engravidar, sempre com a adoção também em mente. Através de uma pesquisa no google, esbarrou no Adote um Boa Noite, e foi ali que tudo começou. “Quando eu vi a foto dos meus filhos, imediatamente eu senti que eles eram meus filhos e comecei uma luta enorme para conseguir me habilitar e ter a chance de adotá-los”.

Não é só aí que o poder da imagem entra na história de Fernanda e Maurício. Foi feita uma surpresa durante a visita: uma filmagem do primeiro contato. O vídeo viralizou, e funciona hoje como fonte de inspiração.

@mae_poramor

O dia mais especial das nossas vidas, o nascimento da nossa família.

♬ Perfect – Ed Sheeran

Depois da adoção, muitas dificuldades ainda vieram. A história que uma criança carrega ao sair do abrigo costuma ser difícil, às vezes traumática. Fernanda usa seu Instagram para mostrar fotos da evolução das crianças, da mudança gradativa dos semblantes, a construção dos sorrisos ao longo do tempo. Desde o início até agora, a família Fabris tem uma história que pode ser contada e vista por fotos e vídeos. Logo será comemorado o terceiro aniversário do nascimento dessa história.

Limitando os olhares

A Comissão Estadual Judiciária de Adoção de Pernambuco (CEJA-PE), da Corregedoria Geral de Justiça daquele estado, divulga fotos e histórias em suas redes sociais, inclusive incentivando a adoção. Desse modo, todos os que navegam pela internet acabam olhando para a realidade do acolhimento.

Foto de criança divulgada pelo CEJA de Pernambuco
Uma das fotos de divulgação utilizadas pelo CEJA de Pernambuco / Foto: Facebook (Reprodução)

A advogada Sabrina Donnatti vê com ressalvas a solução do CEJA. A ideia de uma rede aberta mostrando fotos e dados pode atrair mais curiosos do que pretendentes. Além disso, entende também que tal exposição contribui para a ideia da adoção por caridade, que quase sempre falha. Diante disso, conclui que dá pra garantir a visibilidade de forma restrita, apenas para quem realmente deseja adotar.

Aplicativos de adoção

Pessoas devidamente habilitadas, que já passaram pela primeira fase do processo para buscar uma adoção, podem acessar o A.DOT. O aplicativo vem da parceria entre o Tribunal de Justiça do Paraná, por meio da Corregedoria-Geral da Justiça do Paraná e do Conselho de Supervisão dos Juízos da Infância e da Juventude (CONSIJ-PR), do Grupo de Apoio Adoção Consciente (GAACO) e da Agência Blablu.ag. Conectado ao sistema nacional de adoção, ela facilita o encontro de pretendentes e acolhidos.

No mesmo sentido vai o aplicativo Adoção, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que foi feito com ajuda da Apple Developer Academy, da PUC do Rio Grande do Sul. Qualquer pessoa pode baixar o “Adoção”, mas apenas pretendentes habilitados podem ver as crianças. O principal objetivo do app, segundo o próprio, é atender quem demora mais para deixar o abrigo. O Ministério Público do Estado também ajuda, fiscalizando os usuários.

Para que a foto esteja no aplicativo, é necessária autorização judicial. Após os trâmites e o download, o app traz até mesmo perfis diferentes do desejado pelo pretendente. A ideia, segundo os criadores, é “fazer com que essas crianças e adolescentes não sejam apenas um número no Cadastro Nacional de Adoção”, mas que tenham “novas possibilidades, deixando de ser invisíveis através de fotos e vídeos.

‘Sigilo sim, invisibilidade não’

O meio do caminho

A Doutora Dalizia Amaral vê com ponderação esses aplicativos, pois deve-se ter o cuidado para não tomar crianças e adolescentes como mercadorias, é preciso partir da compreensão de que a adoção é pelo direito de ser filho e ter uma família. Os que querem ser pais precisam pensar o significado da adoção para si e quebrar preconceitos e imagens fechadas a respeito de crianças e adolescentes com maior idade. Por isso, é em cima da invisibilidade em um sentido mais amplo que ela se debruça há 10 anos.

Em casos mais graves, em que há violência e abusos, Dalizia admite que não há a possibilidade de qualquer exposição da imagem. Fora esses, ela desenvolveu uma maneira diferente de dar voz ao acolhimento sem ferir direitos:

” Sempre divulgo fotos mostrando eles em sua melhor performance. […] Geralmente as fotos que posto são fotos que as educadoras do serviço de acolhimento batem, do dia-a-dia. Sempre oriento a bater uma foto de lado, não muito de costas, mas que pegue o perfil, que não mostre o rostinho de cara, mas que não esconda a performance deles, brincando, expressões de alegria. Tenho esse cuidado do ângulo da foto.”

Assim, a doutora ensina que o segredo está no contexto: é que o ECA quer proteger a criança de perigos, constrangimentos e humilhações. Não se trata, assim, da foto em si, mas do que ela mostra. Invisibilidade, aqui, não é apenas não ser visto individualmente, mas socialmente:

Invisibilidade e preconceito

“É um público que desde sempre é atendido nos serviços de acolhimento, desde que tínhamos os orfanatos, os internatos, os educandários, as crianças e adolescentes que entram são crianças em situação de pobreza, e são invisibilizadas desde aí. As famílias muitas vezes são invisibilizadas por serem culpabilizadas pelas situações de risco em que muitas vezes os filhos se encontram.”

“a gente não deixa eles saírem e nem ficarem na rua, na praça, por conta dos olhares das outras pessoas”, é uma frase que ela ouve muito, e incomoda, já que sua luta é para romper barreiras. “Por conta disso, a gente segrega, a gente aparta. Como você quer desmistificar esse serviço, quebrar representações sociais negativas se não oportunizar situações positivas com as pessoas?”

“Se você segrega, vai torná-los invisíveis. Ainda existe muito essa imagem de que crianças e adolescentes em situação de acolhimento são menores infratores. Já ouvi muito e ainda ouço. Não são, são crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados. São sujeitos de direitos, com prioridade absoluta. A doutrina da situação irregular está morta, mas precisa ser enterrada. #SigiloSim #InvisibilidadeNão”

‘Só podemos ter intimidade em uma relação quando podemos ser vistos’

A transformação da criança acolhida em mercadoria também é uma preocupação de Daniela de Oliveira. Com efeito, a psicóloga é contrária à exposição da criança institucionalizada em redes sociais como “propaganda” para a adoção, e olha para a questão da invisibilidade no campo das relações. Muito mais do que ser ou não visto por fotos, aqui há a preocupação em ser visto em seus sentimentos, pois “ser visto é se sentir íntimo”.

Nesse sentido, visibilidade e intimidade são complementares, e não antagônicos. Nessa linha, que trata mais do interior, ela defende o envolvimento da comunidade no acolhimento, tudo baseado no conceito de cooperação. Tanto falta de intimidade quanto invisibilidade, de acordo com sua experiência profissional, podem ocorrer mesmo fora da instituição, em famílias bem estruturadas. Falamos aqui de crianças e adolescentes com agendas superlotadas, por exemplo.

Fotos, crianças e desafios

Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que atualmente 4.155 crianças e adolescentes estão prontas para a adoção e, ao mesmo tempo, 32.901 adultos que querem construir uma família adotiva. Apesar de parecer um número positivo, a fila de crianças e adolescentes que não se encaixam no perfil buscado responde por mais da metade dos casos. Sem um rosto que cative e quebre preconceitos, a maior parte quer crianças brancas, de até 4 anos, sem irmãos e sem deficiências ou doenças crônicas.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, lei mais importante quando se fala em adoção, garante a preservação da imagem, da dignidade e da honra, somando ao que já estabelece a constituição federal. É direito da criança e do adolescente, portanto, estar a salvo de vexames, humilhações, traumas ou exposição indevida. Mas a discussão surge quando a imagem pode, ao contrário, tornar-se geradora de impactos positivos e mais: ser usada para lutar por direitos ainda negados.

Enquanto mantém as crianças a salvo em abrigos, poder público e terceiro setor lutam para evitar que crianças passem tempo demais privadas de uma família. Do outro lado, há o desafio de humanizar as relações, tomando cuidado para que todos os direitos continuem preservados.

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