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Maio Laranja: como o lúdico ajuda crianças a se expressarem 
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Na sala de brinquedos do ambulatório, Lis aceitou inventar uma história com bonecos ao lado da profissional de psicologia. Ela pegou três patinhos e uma galinha e os nomeou: “esse é o Donald 1, esse é o Donald 2, esse é o Donald 3 e essa é a mamãe”. Com os personagens em mãos, começou a narrar: “o Donald 1 estava doente e a mamãe o levou ao hospital”. Depois, trouxe um pato maior para representar o pai e outro boneco como primo. Entre uma fala e outra, Lis mencionava medo, vergonha e algo que o Donald 1 não conseguia contar à mamãe. A brincadeira revelava mais do que imaginação, era uma forma simbólica de expressar o que lhe doía. Brincando, ela começou a falar. 

O caso de Lis foi registrado no artigo acadêmico “Escutando o brincar em um ambulatório de violência sexual infantil”, das autoras Miriam Tachiban e Paula Carvalho Barbosa. Ele exemplifica como atividades lúdicas podem ser essenciais na escuta e no acolhimento de crianças em situação de violência.

Entre 2021 e 2023, o Brasil registrou 164.199 ocorrências de violência sexual contra crianças e adolescentes até 19  anos, segundo o Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, feito pela Unicef e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Os números revelam a urgência de criar ambientes seguros, onde crianças sejam ouvidas, respeitadas e orientadas a reconhecer situações perigosas. 

O brincar como ferramenta

O brincar, o desenhar, contar histórias e se expressar são atividades feitas naturalmente por crianças. Mais do que formas de criatividade e entretenimento, elas são importantes canais de comunicação no universo da infância. Principalmente em maio, mês da campanha do Maio Laranja, de combate ao abuso e à exploração sexual infantil, é fundamental reconhecer as atividades lúdicas como ferramentas essenciais na escuta, prevenção e identificação de possíveis situações de violência. 

A psicóloga da Fundação Iniciativa, Fabiana Silvestre, explica o porquê elas são essenciais: “O uso do lúdico, do desenho e do brincar se torna uma ferramenta de grande eficácia no atendimento infantil porque, muitas vezes, as crianças não têm um discurso claro e estabelecido como nós, adultos. Por isso, muitas coisas são evidenciadas no brincar, o que não deixa de ser um modo de dizer – como dizia Freud: ‘O que a boca cala, falam as pontas dos dedos’”.

Como funciona o uso do lúdico na Fundação Iniciativa?

Na Fundação Iniciativa, os profissionais apostam no uso do lúdico como porta de entrada para o acolhimento e a escuta. “Nós trabalhamos muito com o lúdico, bem como jogos, desenhos, massinha de modelar, pinturas, entre outros (…) esses meios são o modo mais fácil de trazer a criança para o discurso sem fazer o uso de palavras”, relata a psicóloga. 

Um ambiente onde a criança possa se expressar é necessário para a proteção e bem-estar da mesma. Segundo o psicanalista Winnicott, a criança em meio ao faz de conta, característico do brincar, tem a possibilidade de se sentir mais criativa e espontânea, o que pode levá-la a confiar mais no ambiente, sendo um estudo valioso no caso atual de crianças que sofreram violência sexual.

Foto: Fundação Iniciativa


Prevenir também é necessário

Outros recursos são necessários para levar aos pequenos o tipo de situação que eles podem enfrentar e como devem agir. A organização UNICEF lançou um guia com práticas pedagógicas voltadas à proteção de crianças e adolescentes. O documento intitulado “Experiências didáticas por uma educação que protege” traz exemplos de atividades que fortalecem o senso de proteção delas, contendo contações de histórias com personagens que enfrentam situações de risco e pedem ajuda.

Em 2015, a Guarda Municipal de Curitiba fez um teatro de fantoches para conscientizar crianças e adultos. Por meio da criatividade e da interação com o público, os guardas municipais utilizaram a apresentação para conversar com as crianças sobre temas delicados, como o abuso sexual infantil e os riscos da internet sem a supervisão de adultos. As apresentações também promovem orientações relevantes, como identificar sinais de perigo e saber a quem recorrer em caso de suspeita.

Foto: Everson Bressan / SMCS

Foi assim com Lis, que, em meio a uma brincadeira com patinhos e uma galinha de brinquedo, começou a narrar, por meio da fantasia, dores que ainda não conseguia nomear diretamente. Como ela, muitas crianças encontram no lúdico uma forma segura de se expressar. Mais do que atividades recreativas, essas práticas são pontes para escutar os pequenos. Quando conduzidas com escuta e acolhimento, ajudam a criança a compreender seus direitos, reconhecer limites e saber que ela não está sozinha. Em tempos de tantos silêncios, brincar também é um caminho de proteção.

Por: Isabela Tota

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