Problema ainda afeta uma em cada 20 crianças e adolescentes no Brasil
A puberdade feminina costuma começar entre os 8 e 13 anos de idade. Uma menina de 11 anos, portanto, está na iminência dessas mudanças físicas e emocionais. Mas nem todas tem a vida tão diferente da de uma mulher que já passou por essa fase a algum tempo. No boqueirão, um dos maiores bairros curitibanos, a pré-adolescente passa o dia cortando tecidos, carregando-os de lá pra cá, em meio a máquinas, tesouras e diversos instrumentos pontiagudos. A menina está entre as 706 mil crianças vítimas das piores formas de trabalho infantil, e pode contrair problemas físicos e psicológicos causados pelos esforços repetitivos. O primeiro efeito será, provavelmente, uma ou duas faltas na escola. Não conseguindo acompanhar o ritmo da turma, por fim, aumenta suas ausências até deixar de vez os estudos. O caso foi relatado pela assistente social da Fundação Iniciativa, Patrícia Reis.
Hoje não é apenas dia dos namorados, mas também dia mundial contra o trabalho infantil, instituído pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em 2007, nasce a lei que transforma o dia 12 de junho também em dia nacional de combate ao trabalho infantil, fruto de projeto de 2005 da Senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO). 2021 foi declarado pela ONU como Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil. Aqui no Brasil, ninguém pode trabalhar antes dos 16 anos, mas a subnotificação e a naturalização de situações de abuso deixam gestores e população no escuro quanto aos números reais desta mazela no Brasil de 2022.
Alguns dados sobre trabalho infantil
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, achou cerca de 1.768 milhão de crianças de 5 a 17 anos em trabalho infantil, a maioria (66%) pretos ou pardos e meninos (66,4%). As crianças brancas ganhavam em média R$559, enquanto as negras recebiam cerca de R$467. A pesquisa é de pouco antes da pandemia, portanto, não pegou o cenário do novo normal. Mesmo assim, temos uma pista: Patrícia conta um pouco de suas observações de campo: com creches, centros de convivência e escolas fechadas, mais filhos tiveram de acompanhar os pais ao trabalho, e muitos acabaram forçados a arregaçar as mangas antes da hora. A UNICEF, chegou a recomendar a volta presencial como ferramenta para lidar com o problema.
Dentre os mais pobres, é automático: sem conseguir uma creche ou lugar para deixar os filhos, os pais os levam junto ao trabalho. Ao longo dos anos a criança passa, enfim, de observadora a ajudante. Está consumada, enfim, a exploração. Sumiu, afinal, o direito ao lazer, a brincar, a se entreter, garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Mas o que, afinal, se considera trabalho infantil?
Ele existe desde sempre, mas tomou dimensões assustadoras quando iniciou a Revolução Industrial. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Trabalho infantil é toda atividade laboral – remunerada ou não – realizada por uma criança ou um adolescente que não está, via de lei, na idade para o trabalho. Nossa idade de corte é 16 anos, mas a partir dos 14, já é permitida a atividade na qualidade de aprendiz. A função é ditada pela Lei Nº10.097, de 19 de dezembro de 2000, que diz, dentre outras coisas:
- que não pode ser feito em ambientes prejudiciais ao jovem;
- que o jovem tem direito a um trabalho em horário e local que permitam ir à escola;
- que o empregador deve formar o jovem no ofício estabelecido;
- que o jovem deve trabalhar, no máximo, 6 horas por dia;
O trabalho noturno, perigoso ou insalubre é proibido a qualquer menor de 18 anos – sendo ou não aprendizagem. O conceito de “perigoso ou insalubre” seria, nesse sentido, bastante relativo, não fosse o Decreto Nº 6.481, de 12 de junho de 2008, que estabeleceu a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). Assim, qualquer trabalho disposto nesta lista está proibido a pessoas com menos de 18 anos. A TIP traz, dentre outros ramos:
- Construção civil;
- Borracharias;
- Esgotos;
- Cemitérios;
- Manuseio de agrotóxicos;
- Extração ou corte de madeira;
- Trabalho em manguezais ou lamaçais;
- Cata de iscas aquáticas ou mariscos
- Extração de pedras, areia e argila;
- Reciclagem industrial de papel, plástico e metal;
- Tecelagem;
- Produção de carvão vegetal;
- Fabricação de explosivos ou fogos de artifício;
- Curtumes;
- Processamento ou empacotamento mecanizado de carnes;
- Fabricação de farinha de mandioca;
- Indústria cerâmica ou olarias;
- Fabricação de cimento ou cal;
- Destilarias de álcool;
- Serralherias;
- Fabricação de móveis;
O PETI
Velados e naturalizados, muitos casos somem dos olhos poder público. A Secretaria Nacional de Assistência Social diz que a maior parte está em atividades informais, na agricultura familiar, no tráfico, nas várias formas de exploração sexual, no trabalho doméstico, e no trabalho realizado dentro de casa. Dessa forma, muitas vezes a cultura ou os gestores sequer as percebem como trabalho infantil.
Na ausência do estado, as famílias colocam a criança – principalmente meninos – em seu papel de suprir a renda. A decisão concorda com o senso comum, dono da ideia de que o trabalho enobrece a criança, mas discorda com o Estatuto da Criança e do Adolescente. A profissional também chama a atenção para dentro de casa: é que não dá pra confundir tarefas diárias, necessárias para a criança, com trabalho doméstico. “Não é responsabilidade dela cuidar da casa, dos irmãos”, conclui.
Em 1996, através de uma experiência em carvoarias do município de Três Lagoas-MS, surge o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Depois, em 2005, surge o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), e os serviços sociais passam a trabalhar de mãos dadas. No entanto, Patrícia vê precarização: mesmo com legislação tratando da obrigatoriedade de psicólogo e assistente social nas escolas, as unidades acabam por não implementar a medida.
O Fundo Municipal de Assistência Social de Curitiba reserva cerca de R$20 mil para as ações do PETI. Mesmo assim, a cidade é a 8ª em número de famílias com pelo menos uma criança trabalhando, segundo amostra do Cadastro Único do Governo Federal (Aracaju é a primeira no ranking). Na capital paranaense, conta Patrícia, é muito comum o trabalho de crianças em carrinhos de material reciclável.
Começando pela criança
“Hoje é muito difícil trabalhar a família para alcançar a criança, por isso trabalhamos a criança para alcançar a família”. Para Patrícia Reis, é muito difícil mudar hábitos dos pais e avôs. O foco deve ser, primeiramente, a criança, em ensinar seus direitos e não naturalizar situações de abuso. A criança é, assim, “o seu primeiro agente de proteção”. Família, escola, conselho tutelar, tudo vem depois.
“Pode ser que hoje, pela idade dela ou dependendo da família em que está inserida, não consiga dizer não, não fazer, sair desse ciclo de violência, mas ela sabe dos direitos dela. A informação é algo que ninguém vai tirar dela. “A submissão a situações ilegais dá lugar ao conhecimento.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, o governo federal citou as ações realizadas nas bases para sanar o problema:
- Busca ativa pelo Serviço Especializado em Abordagem Social nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social, (CREAS) e pelas equipes volantes do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS);
- Registro das famílias no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico);
- Atendimento às crianças e adolescentes no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV);
- Trabalho com as famílias no Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI);
- Acesso à educação às famílias e aos adolescentes a partir dos 16 anos, com vagas no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), pelo Programa de Promoção do Acesso ao Mundo do Trabalho (Programa Acessuas Trabalho);
Denuncie
Erradicar o trabalho infantil é a meta 8.7 dos objetivos do desenvolvimento sustentável. “Começa pela denúncia. A política pública só vem diante dos dados”. Onde há dados subindo, há ação. “Se não denunciamos, nunca vai vir política para aquela área. Para uma política pública acontecer, precisamos falar mais, denunciar mais”.
Mas quais seriam essas políticas? para o UNICEF, passa por protocolos e diagnósticos, pela articulação entre regiões e concessão de benefícios para as famílias necessitadas. Eles sugerem às prefeituras, em primeiro lugar, a criação de um pacto municipal contra o trabalho infantil, que leve a uma agenda permanente e, em seguida, a um fórum de enfrentamento ao trabalho infantil, para avaliação anual de dados e ações. Em 2020, descobriram que mesmo com leis, 8 cidades do litoral paulista contavam com alguma forma de trabalho infantil.
Ao flagrar ou perceber sinais de trabalho infantil, o primeiro passo, antes de mais nada, é buscar o conselho tutelar. Patrícia explica que o conselheiro observa caso a caso e age de acordo com a necessidade. Além disso, para os que não querem se identificar, dá pra ligar para o 156 – em Curitiba – ou para o 181 – no Brasil todo.