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A importância das Casas-Lares no acolhimento e proteção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social
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Serviço de acolhimento institucional é o maior viabilizador, das modalidades existentes em políticas públicas, garantindo direitos essenciais.

Lar do latim, Laris (espírito protetor da casa e da família), é mais um sentimento de pertencimento que afaga a alma do que a palavra propriamente dita. Lar, moradia, habitação em seus diferentes termos, constante nas observâncias da  Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal, é uma condição básica de direito adquirido. Para além da teoria legal, as desigualdades e questões sociais vetam tantos de alcançá-lo.

Dados extraídos em tempo real no Painel de Acompanhamento do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), indicam que cerca de 30 mil crianças e adolescentes estão em situação de acolhimento em todo o país, distribuídas em 5.514 unidades de atendimento (Serviço de Acolhimento: Institucional 98.3%, Programa de Acolhimento Familiar 1.7%), com 4.142 disponíveis ou vinculadas para adoção.

Uma trajetória de vida árdua em um contexto histórico

A história de Marileide da Silva, 40, Advogada, se relaciona a realidade já vivenciada por milhares de brasileiros, numa época em que o Estado adentrava-se, em estabelecer normativos legais e políticas socais efetivas. Embasados na Constituição Federal (1988), Declaração Universal dos Direitos da Criança e apoio do UNICEF – Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância), visavam corrigir falhas estruturais alarmantes em instrumentos já existentes, para assegurar os direitos da criança e do adolescente.

Rejeitada pela mãe ainda na gestação, nasceu em Moreira Sales (PR), foi “dada”, para um casal, logo após o nascimento. Devido a invenção de histórias e sua semelhança com o pai adotivo, a mãe adotiva desconfiava que ela era filha verdadeira do esposo, sendo fruto de um adultério. Por isso, ficaram com ela até os 3 anos de idade e depois a mãe adotiva “deu” para outra família de Goioerê (PR), por vingança do marido, que estava fora por conta do trabalho. Com o tempo, a outra mãe adotiva se tornou alcoólatra, por isso lhe batia constantemente, as marcas estão corpo até hoje.

Após esse período, foi morar com uma senhora que tinha interesse nela apenas para fins de serviço, tanto que a impediu de ter contato com os filhos dela. Anos depois, mudou-se para Rondônia, onde morou com uma das filhas dessa senhora. Lá, precisou cuidar do filho dessa mulher. Sofreu tentativas de estupro na fazenda. Aos 14 anos, viu uma placa da promotoria e foi procurar ajuda. Contou sua história a um juiz que lhe deu atenção, se interessando pelo caso e procurando formas de ajudá-la. Foi quando ela retornou para o Paraná, agora em Curitiba. Morou durante um período na casa de uma mulher que trabalhava na casa pastoral, porém, lá não havia a disponibilidade de vagas. Estudou e trabalhou até ir morar sozinha. 

Rastros de uma infância negligenciada

“Ninguém ouve o seu choro, manda você calar a boca”.

“Sentir proteção, cuidado básico com a dignidade do ser humano”.

“Escrevia cartas indagando como era a minha mãe e por que ela havia me abandonado”.

“Nunca fui adotada, eu era a empregada”.

“Apanhava se esquecesse a louça, a louça era mais importante do que eu”.

“Eu não podia esquecer a descarga, mas eles podiam esquecer de mim.”

“Meu primeiro aniversário foi com 17 anos. Eu me perguntava: Será que eu nasci mesmo?”. (Vazio)

Nunca me perguntaram se eu queria ir. Só disseram: Pega as suas roupas”.

Não sabia a hora que ia comer, só chorava”.

“Você sendo uma criança e tendo que atender a necessidade do outro”.

As medidas de atenção voltadas às crianças no Brasil, tiveram início ainda no período Colonial, em caráter religioso. Séculos à frente, após a Proclamação da República (1889), a legislação consolida em 1927, o Código de Menores, no mínimo falho (não previa a garantia de direitos). Concentrava-se em cuidar das questões de higiene e delinquência, além de estabelecer a vigilância pública sobre a infância. Os menores eram classificados entre abandonados e delinquentes. Em 1964, o Regime Militar cria a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM), órgão responsável pela Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (FEBEM), alvo de críticas e controvérsias por seu regime repressivo.   

No fim dos anos 70 e decorrer da década de 80, movimentos sociais surgiram, a fim de promover pautas que denunciavam um modelo de “apoio” com evidentes traços de ineficácia no tratamento de crianças e adolescentes. Mantidos em instituições denominadas (reformatórios, internatos, educandários e orfanatos), em caráter de estadia permanente, alguns ficavam até os 18 anos.

A promulgação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), impôs mudanças estruturais rigorosas nos modelos de instituições de acolhimento. A partir daí, surgem novos conceitos do que seria o local ideal para receber crianças e adolescentes em situação de abandono, violência física e sexual, dentre outros fatores.

Mas o que é o ECA?

Estabelecido com base nos princípios do Artigo­­ 227 da Constituição Federal, é um conjunto de normas com 267 artigos, que tem por objetivo regular como o Estado, a sociedade e a família devem agir com menores de 18 anos, para assegurar esses direitos. O estatuto é subordinado somente à Constituição e, por ser uma lei complementar a ela, é autônomo, e nenhum outro tipo de lei ou decreto tem competência para intervir em sua legislação.

Instituído pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o ECA é considerado uma revolução no ordenamento jurídico infantojuvenil brasileiro, pois determina uma série de obrigações legais, que assegurem proteção integral à criança e ao adolescente.

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Constitui-se também por esse avanço alguns serviços, entre eles o (Conselho Tutelar, Assistência Social, Varas de Infância e Juventude), além de outros órgãos do Poder Público que zelam pelos direitos fundamentais inerentes a condição da criança e do adolescente.

Antes do ECA não existia Casa-Lar e, longe disso, inimaginavelmente a estrutura que se tem atualmente. O Documento de Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes do extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), define a Casa-Lar como uma unidade residencial, que oferta o serviço de acolhimento provisório a crianças e adolescentes de 0 a 18 anos sob medida protetiva, com restrição de até 10 usuários. Uma pessoa ou casal trabalha como educador/cuidador residente. Esse tipo de serviço visa estimular o desenvolvimento de relações mais próximas do ambiente familiar, promover hábitos e atitudes de autonomia e de interação social com as pessoas da comunidade. Deve dispor de supervisão técnica, localizar-se em áreas residenciais da cidade e seguir o padrão-sócio econômico da comunidade onde estiverem inseridas.

Marileide conta que, “O ECA era algo muito novo naquela época, por isso não existiam casas lares ou tantos olhares voltados para as crianças e adolescentes. Se tivesse a estrutura que tem hoje em dia para tirar a criança do anonimato, me sentiria parte de algo. Ter alguém ali que vai te proteger, ter a sensação de que ali é o meu lar, mesmo não sendo a minha família. Que eu moro em uma casa! Saber quem é o seu responsável, ter o direito à educação, a garantias básicas, saber o horário que vai comer. Hoje, elas têm direito ao nome e documento. Antes isso não existia e causava a sensação de não ser ninguém”, conclui.

O importante é não desistir

Formou-se em direito no ano de 2019.

Em 17 de fevereiro de 2022, fez o juramento na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Estudando para ser juíza da Vara da Infância e Juventude, com o objetivo de garantir o direito da criança e do adolescente”.

“É uma motivação buscar conhecimento para melhorar a vida delas em todos os sentidos”.

“O cuidado com a aplicação da lei para garantir o desenvolvimento e a dignidade da criança”.

“Foi fundamental e determinante o Juiz ter olhado em meus olhos, e ter tido a percepção do que eu sentia e desejava”.

“Ele decidiu assertivamente pelo meu desenvolvimento e isso fez toda a diferença”.

“Muitos acreditam que são rebeldes sem causa, mas não tem noção do que os acolhidos passam”.

“Muitos não compreendem os acolhidos. Já tem comida, por que você está chorando?”.

Eu sei o que eles sentem porque já passei por isso”.

Convidada pela Fundação Iniciativa a relatar sua história de vida as nossas crianças e adolescentes, Marileide objetivou dar relevância as oportunidades que elas dispõem presentemente e lhes incentivou a agarrá-las. Destacou do mérito de seus esforços em sua aplaudível jornada, ter conquistado em meio a tanta dificuldade (Casa Própria, CNH, Trabalho e Faculdade).

“Olhem para as crianças e adolescentes com olhar de acolhimento, eles serão o futuro, se garantidos os seus direitos hoje”.

Marileide da Silva, Advogada e futura Juíza da Vara de Infância e Juventude

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